terça-feira, 22 de agosto de 2017

DONA ESMERALDA, UMA MORADORA DE RUA


Quem era aquela mulher que dormia na praça em frente à padaria? Durante o dia perambulava pela cidade. Recolhia restos de comida e verduras no lixo do Hiper Mercado e ali no canto da praça, em um fogão a lenha improvisado preparava seu almoço, e no início da noite o jantar. Habituado com sua presença ali na praça comecei a observá-la e notei algo diferente naquela senhora.Vi algo fora do comum, para quem vive na rua. Diferente dos outros moradores de rua. A sua comida, mesmo sendo encontrada no lixo, era cheirosa demais! O aroma da comida tomava conta da praça. Alguns comerciantes e transeuntes torciam o nariz quando sentiam o cheiro da comida e tinha alguns que verbalizavam como é que um alimento achado no lixo podia cheirar tão bem assim. Outros diziam que não tinham coragem de comer aquela comida.Gente cheia de... sabem né! Opinião de quem vive de fora deste mundo da rua. Gente alienada da realidade.

Bem de manhã, Dona Esmeralda preparava um café que perfumava a praça e adjacências. Aos poucos iam chegando outros moradores de rua, alguns que traziam na mão um saquinho de pão e embalagens com leite. Mesmo diante de tanta miséria a solidariedade reinava entre eles. Chegavam tão discretamente que não era percebida nenhuma algazarra. Parece que tudo era organizado para não serem percebidos. Invisíveis para a sociedade. Talvez seja assim que queriam parecer.
Na liderança, Dona Esmeralda.  No tempo do inverno o número de moradores de rua aumentava consideradamente,mas mesmo assim, se mantinha a ordem. Alguns mendigos ficavam distantes do lugar onde era servido o café,quando com um simples gesto com as mãos de Dona Esmeralda, eles se aproximavam. Era respeitada pela gente da rua. A cada dia Dona Esmeralda chamava mais minha atenção. Uma líder nata. Toda mobilização que ela promovia naquele espaço público era feita com discrição. Quem era aquela senhora?

Num dia chuvoso tentei uma aproximação. Foi uma aproximação desastrosa! Respondeu com firmeza e educação, antes que eu falasse alguma coisa: não preciso de ajuda de ninguém e nem de misericórdia. Entendi aquela repulsa pela gente do meu mundo.Os moradores de rua tinham motivos de sobra para evitar nosso mundo considerado “normal”.Os moradores próximos da praça eram grosseiros e sempre estavam hostilizando os seres humanos maltrapilhos que viviam ali. Numa noite um carro passou em alta velocidade e atiraram uma vasilha com fezes naqueles mendigos. E gritavam palavras carregadas de impropérios. Os transeuntes faziam comentários desnecessários do tipo“gente suja, gente mal cheirosa” e outros pediam a higienização da praça. Umas propostas apresentadas em uma assembléia de moradores sugeriam que aqueles mendigos fossem colocados em um galpão da prefeitura. Gente vagabunda. A atitude de Dona Esmeralda quando tentei aproximação não poderia ter sido outra. Mesmo assim, não desisti da ideiade saber quem era aquela senhora.

Observando Dona Esmeralda de longe e cuidando para que ela não percebesse, todo mês, via que ela entrava na agência bancária da praça, ia até ao caixa, conversava e saía com um embrulho que parecia ser dinheiro. Ora, se ela tinha conta em uma agência de banco, então tinha uma família. Tinha uma história. Tinha documento. Tinha uma identidade. Eu conhecia a caixa do banco que atendia a senhora. Depois de um tempo me aproximei da caixa e perguntei quem era aquela senhora. Ela ficou assim,meio que desconfiada comigo.Como eu era cliente do banco, me contou o que ela sabia sobre Dona Esmeralda. Pouca coisa. Tinha realmente uma conta bancária e todo mês ia receber a aposentadoria que o marido policial tinha deixado a ela. Dona Esmeralda era viúva. Todo mês ela pegava uma pequena parte do dinheiro da aposentadoria e o restante da grana depositava na conta de um dos seus filhos.

Sabe quando o povo resolve usar a imaginação?  Diziam que ela tinha sido abandonada no dia do casamento e resolver a tornar-se uma andarilha. Diziam que depois de ter descoberto a traição do marido ficou louca. Povo linguarudo e maldoso. Uma coisa era certa neste falatório todo:ela falava Inglês fluentemente. Um Português impecável. Os traços no rosto eram de uma mulher que tinha sido bem tratada. Os fofoqueiros da praça diziam que ela tinha exercido a profissão de professora e de tanto estudar tinha ficado louca. Verdades ou não sobre sua história,agora eu sabia que ela tinha uma conta bancária, filhos e um marido já falecido. Aos poucos ia descobrindo quem era Dona Esmeralda. Mas ela ainda era hostil à aproximação de qualquer pessoa. Parecia que não queria que seu mundo se misturasse ao nosso. 

Aos poucos fui percebendo que ela conversava com o senhor Antonio verdureiro. Passava horas ali na banca de verduras de cabeça baixa e falando entre lábios com ele. Sobre o que será que falavam? Talvez o senhor Antonio tivesse mais informação sobre Dona Esmeralda. Uma tragédia no final de semana quase interrompeu minha investigação. A prefeitura cedeu à pressão dos moradores do bairro e começou uma limpeza à força, enviando os mendigos para cidades vizinhas. Muitos moradores de rua receberam passagens para que eles fossem para suas cidades de origem, compulsoriamente. Tudo isto à surdina. Tudo isto na calada da noite. O que os agentes públicos não esperavam era que houvesse resistência. E houve! Dona Esmeraldo com um grupo de mendigos em farrapos se colocou em defesa dos amigos. Foram espancados e infelizmente Dona esmeralda levou uma cacetada na cabeça e foi internada, correndo risco de vida. Ela ficou meses em coma e distante das ruas.

Neste período de ausência de Dona Esmeralda me aproximei do verdureiro, e aos poucos fui ganhando sua confiança. Ele me revelou o que eu já sabia, mas não tinha certeza,que ela era realmente professora de línguas estrangeiras. Na banca de verduras, com aquele gesto de abaixar a cabeça, ela não queria ser percebida e ensinava Francês para o velho verdureiro. Ensinava Inglês também.  Soube dela que era professora e mais nada disse o verdureiro.Poucos dias depois a praça estava cheia de moradores de rua novamente, e depois de um tempo apareceu Dona Esmeralda. Agora debilitada, e com o lado esquerdo do corpo quase neutralizado e arrastando as pernas. Falava com a língua enrolada. A pancada fora forte demais. Não ia mais ao banco. Não cozinhava mais. Um olhar triste e distante. Era evidente a deterioração de um ser humano... Um dia quase parti para cima de um comerciante da praça, que comentava em um grupo de pessoas“está toda estropiada e não morre, deveria ter morrido”. Perdi a compostura e mandei o cara para...

Em uma conversa reservada com a caixa do banco fiquei sabendo que ela recebeu a visita de um dos filhos no hospital, uma única vez, enquanto estava internada. O filho, acompanhado de sua esposa, levou um papel do banco com um pedido autorizando que eles tomassem conta da sua conta bancária. Ela assinou aquele papel em silêncio e de cabeça baixa. Nem um abraço ganhou do filho e da nora que não via há tempos. Nem um beijo. Duas semanas da sua volta à praça aconteceu outra tragédia.Num final de semana,um grupo de jovens de classe média colocou fogo em dois moradores de rua. Como justificativa do ato de barbarismo disseram que estavam brincando, tinham acabado de sair de uma balada. Temia pela vida daquela senhora. Uma semana depois da tragédia os jovens saíram pela porta da frente da delegacia, pagaram a fiança. Um comentário de um dos pais dos jovens criminosos:“Imagina meu filho ficar preso por causa destes farrapos humanos”.

Aos poucos, mesmo com dificuldade, Dona Esmeralda foi voltando à rotina da praça. Continuou transmitindo conhecimentos ao verdureiro, apesar da limitação provocada pela cacetada na cabeça. E veladamente o homem me trazia informações sobre ela. Descobrira que ela é que tinha abandonado a família, e não o contrário. Não era respeitada pelos netos que a chamavam de velha gagá, principalmente quando não liberava o parco dinheiro que recebia. Não tinha liberdade em sua casa. Aos poucos foi sendo jogada de lá para cá, até ser colocada num quartinho isolado no fundo da casa. A nora que a agradava na frente das visitas, na intimidade resmungava da sogra para o marido. Um dia Dona Esmeralda saiu escondida e escolheu a rua como moradia,onde viveu muitos anos. Longe da família. Pelo menos naquela praça era respeitada pelos seus pares.

Porém a hostilidade na rua aumentava a cada dia, embora a solidariedade de instituições religiosas e das pessoas também aumentasse. Em um ano de noites de muito frio, Dona Esmeralda foi vencida. Foi encontrada morta em um espaço entre a padaria e uma casa onde tentou se safar do frio. Foi encontrada congelada. Enterrada como indigente. Não apareceu ninguém para reclamar o corpo. Penso que teria ainda muito que saber de Dona Esmeralda. Penso em cada morador de rua ali naquela praça, com histórias semelhantes ou diferentes da dela. Penso na desumanização da sociedade. Aonde chegaremos assim? Cinco anos depois apareceu um dos filhos de Dona Esmeralda, perguntando por ela. Disse que precisava encontrá-la para assinar um documento para que ela autorizasse a venda de uma de suas casas. Naquele dia me vinguei pelo desprezo com que aquele “filho da...”tratara a sua mãe. Disse com alegria no coração que ela não era vista por ali há muito tempo. Ele virou as costas e foi embora sem saber que sua mãe tinha falecido.


Nenhum tipo de preconceito pode ser proposta de vida. 

sábado, 19 de agosto de 2017

Memória e Imagem: Memória & Imagem

Memória e Imagem: Memória & Imagem: MARCOS ROBERTO BUENO MARTINEZ Sumário ApresentaçãFotografias antigas e depoimentos
de antigos moradores de Cotia ajudaram delicadamente a reconstruir a história
desta cidade. Faça um passeio pela memória de gente que tem o que contar.
Visite o Livro Memória & Imagem e solte a imaginação.
 


o [Ecléa Bosi]............................. Prefácio à 1ª Edição [Paulo Bafile]..............

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

DIA DOS PAIS É DIA DE AMABILIDADE TAMBÉM


Ser amável com a mãe não é difícil. Demonstrar sentimentos de amabilidade com o ser feminino também não é difícil. Agora, mostrar amabilidade escancaradamente com nosso pai é difícil! Trava! Porque este gesto de amabilidade é tão truncado entre pais e filhos? Não é porque não existe este sentimento entre eles. Esta amabilidade é tão forte que muitas vezes nem imaginamos a sua dimensão e profundidade. Talvez todo este sentimento fique preso no inconsciente pela cultura de que homem que é homem não expressa seus sentimentos de carinho. É a mesma coisa de quem diz que homem não chora. Eita besteirada! Homem chora. Homem tem sentimentos de carinho sim!Amor de homem, de pai também existe. É tão forte como amor de mãe.

Na infância o amor de homem,pais e filhos é intenso e com o tempo vai rareando.Na velhice volta intenso novamente.Nesse hiato entre a infância e a velhice parece que se distancia o sentimento entre eles, mas ele vive camuflado.Na verdade ele não rareia, fica escondido e continua intenso e cuidadoso. A qualquer perigo que ronde os filhos eles reaparecem. Quando ele reaparece, transluz.É como se fosse uma reconquista da infância. Uma reconquista do abraço.A reconquista de um beijo na face. Do olhar. A reconquista do conselho dado. Pais e filhos se reencontram intensamente em todas as fases da vida. Cada fase do seu jeito. Não pense que nessa fase intermediária esse amor não exista tão intensamente. Existe sim!Neste período, quando lentamente vamos crescendo,se estabelece um amor de um jeito diferente. Um amor de pai no sentido de defender os filhos do mundo que contextualiza as suas vidas. Um amor que protege.

Não é fácil ser pai em uma sociedade patriarcal. Os pais estão bem diferentes de outros tempos. A maioria ajuda nos fazeres da casa. Alguns levantam com a mãe para cuidar quando o filho exige noites mal dormidas. Uma febre, uma gripe ou o reclamo de uma dor invisível. Os pais adoram um abraço. Quem já não ouviu a frase “pai que é pai tem que participar”. As coisas já mudaram tanto que tem pai que assume a paternidade dos filhos sozinho. Diga sem medo que você ama muito seu pai. Se você não pode dar um presente, a crise está feia, dê um abraço. Faça um almoço do jeito que ele gosta. Talvez ele até faça um gesto de indiferença, mas seus sentimentos internos estão borbulhando de alegria. Não se esqueça de que tem pai à moda antiga, que tem que manter aquela seriedade espartana. Se o seu pai virou uma estrelinha, busque-o na memória e reviva os bons momentos que passaram juntos. Só entrenós, pai que é pai adora um gesto de amabilidade.


Um bom domingo do Dia dos Pais a todos

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

O MENINO FAZEDOR DE ARTEIRICES


Um mês sim outro não, o menino estourava o dedo do pé (pododáctilo – hálux –dedo grande do pé)em alguma coisa pela frente. Tropeçava em uma pedra que encontrava no meio do caminho. Chutava o chão antes do que a bola. Tropeçava com o dedão em algum degrau de escada. Um desastre! O dedão do pé andava todo estropiado. Estes dedões passaram maus momentos nesta existência...(risos).O menino das arteirices gostava muito de brincar e tinha pouco apreço pelo estudo. Brincava de pega-pega, de salva-pega, adorava brincar de passa anel. Menino danado, foi com a brincadeira de passa anel que ganhou o primeiro beijo. Era tão arteiro, que adorava pegar rabeira nos caminhões de algodão, um perigo, que passavam na frente da sua casa. 

As arteirices eram tamanhas, que um dia tirou a camisa do corpo e a jogou em um caminhão em movimento e acertou bem no meio da calota. O caminhão foi embora e levou a camisa enroscada ali, o desespero tomou conta, saiu aos gritos, mas o motorista seguiu seu caminho. O menino não teve dúvida: saiu correndo em uma tentativa desesperada para alcançar o caminhão. Lógico que não alcançou. Mesmo assim, saiu pela estrada com a esperança de achar a camisa e pensando em que desculpa arrumaria pelo sumiço da roupa. Naquele dia a sorte esteve do seu lado. Depois de andar quilômetros na estrada de terra vermelha, encontrou a camisa toda suja. Foi salvo pela persistência e se livrou do castigo que provavelmente levaria se chegasse a casa sem a tal camisa. Uma traquinagem atrás da outra.

Mas nem sempre a sorte esteve do seu lado. A Festa de Nossa Senhora da Aparecida, padroeira da cidade, ajuntava uma multidão para comemorar o aniversário da santa. A festa era realizada em um clube da cidade que tinha um imenso lago. Só de pensar o que poderia ter ocorrido, dá um arrepio na coluna. O menino, danado que era,não perdia uma festa, estava sempre lá, com sua roupa de domingo.  Os barcos eram todos enfeitados e o lugar ficava cheio de gente... uma vez ele resolveu ficar com um pé em um barco e o outro pé em outro barco que estava ao lado. Com a movimentação da água do lago os barcos começaram se mover.  Advinha o que aconteceu? Os barcos começaram a abrir e suas pernas foram abrindo junto com o movimento dos barcos. Ele e uma centena de outros meninos caíram dentro do lago. Os barcos que se abriram lentamente começaram a voltar a seus lugares de origem. O menino danado poderia ter perdido a vida ali mesmo. Não se sabe quem foi, mas sabe-se que a mão de alguém o puxou pelo cabelo antes que os barcos se encontrassem e se fechassem de novo na posição anterior. Saiu do lago todo molhado, foi ao banheiro, enxugou-se e foi curtir a festa como se nada tivesse acontecido. Parece que este menino não tinha noção de perigo...

Um dia o menino saiu de casa sem rumo e foi parar na Matinha da Viúva, um resto de mata que sobrou na cidade. Resolveu comer uma suposta fruta que não era fruta e teve uma tremenda dor de barriga e muita febre. Chegou a ser internado. A tal fruta era venenosa. Era uma peraltice atrás da outra. No dia seguinte o menino já estava fazendo ou procurando fazer mais arteirices.

O menino das arteirices começou conhecer o que era preconceito bem cedo. Até podia não conhecer a palavra, mas sentiu o gesto da diferença. Num dia ensolarado em um campinho de futebol, o técnico do time adversário gritou “Pega esse pretinho que mora na baixada. Preto só serve para jogar bola mesmo!” O menino parou e olhou bem arregalado para aquele homem de meia idade e disse com firmeza“Ele tem nome viu, seu moço! O nome dele é Adriano e nós o chamamos de Dri.” O homem não percebeu a indignação dos meninos e soltou uma segunda frase pior que a primeira. O tempo fechou e o jogo terminou com uma briga. Não era assim que deveria ter terminado aquele jogo. O Dri era um menino inteligente, estudioso, trabalhador. Uma família de negros com mais de oito irmãos e o Dri, com onze anos, trabalhava para ajudar a mãe. Estudava com o menino arteiro e com os outros meninos. Convivia com todos no dia-a-dia. Como é que aquele homem bestial podia falar aquilo dele!Infelizmente tem coisa na vida que se aprende de forma adversa. Mas o menino tem notícias do Dri: ele fez medicina e é um médico excepcional. Venceu o preconceito social e racial com estudo. Quer tapa na cara dos que subjugam o próximo maior do que este?


Uma coisa é certa: o menino das arteirices cresceu, voltou a estudar e hoje vive feliz, mesmo sendo bem grandão.