Quem
era aquela mulher que dormia na praça em frente à padaria? Durante o dia
perambulava pela cidade. Recolhia restos de comida e verduras no lixo do Hiper
Mercado e ali no canto da praça, em um fogão a lenha improvisado preparava seu
almoço, e no início da noite o jantar. Habituado com sua presença ali na praça
comecei a observá-la e notei algo diferente naquela senhora.Vi algo fora do
comum, para quem vive na rua. Diferente dos outros moradores de rua. A sua
comida, mesmo sendo encontrada no lixo, era cheirosa demais! O aroma da comida
tomava conta da praça. Alguns comerciantes e transeuntes torciam o nariz quando
sentiam o cheiro da comida e tinha alguns que verbalizavam como é que um alimento
achado no lixo podia cheirar tão bem assim. Outros diziam que não tinham
coragem de comer aquela comida.Gente cheia de... sabem né! Opinião de quem vive
de fora deste mundo da rua. Gente alienada da realidade.
Bem
de manhã, Dona Esmeralda preparava um café que perfumava a praça e adjacências.
Aos poucos iam chegando outros moradores de rua, alguns que traziam na mão um
saquinho de pão e embalagens com leite. Mesmo diante de tanta miséria a
solidariedade reinava entre eles. Chegavam tão discretamente que não era
percebida nenhuma algazarra. Parece que tudo era organizado para não serem
percebidos. Invisíveis para a sociedade. Talvez seja assim que queriam parecer.
Na
liderança, Dona Esmeralda. No tempo do
inverno o número de moradores de rua aumentava consideradamente,mas mesmo
assim, se mantinha a ordem. Alguns mendigos ficavam distantes do lugar onde era
servido o café,quando com um simples gesto com as mãos de Dona Esmeralda, eles
se aproximavam. Era respeitada pela gente da rua. A cada dia Dona Esmeralda
chamava mais minha atenção. Uma líder nata. Toda mobilização que ela promovia
naquele espaço público era feita com discrição. Quem era aquela senhora?
Num
dia chuvoso tentei uma aproximação. Foi uma aproximação desastrosa! Respondeu com
firmeza e educação, antes que eu falasse alguma coisa: não preciso de ajuda de
ninguém e nem de misericórdia. Entendi aquela repulsa pela gente do meu mundo.Os
moradores de rua tinham motivos de sobra para evitar nosso mundo considerado “normal”.Os
moradores próximos da praça eram grosseiros e sempre estavam hostilizando os
seres humanos maltrapilhos que viviam ali. Numa noite um carro passou em alta
velocidade e atiraram uma vasilha com fezes naqueles mendigos. E gritavam
palavras carregadas de impropérios. Os transeuntes faziam comentários
desnecessários do tipo“gente suja, gente mal cheirosa” e outros pediam a
higienização da praça. Umas propostas apresentadas em uma assembléia de
moradores sugeriam que aqueles mendigos fossem colocados em um galpão da
prefeitura. Gente vagabunda. A atitude de Dona Esmeralda quando tentei
aproximação não poderia ter sido outra. Mesmo assim, não desisti da ideiade
saber quem era aquela senhora.
Observando
Dona Esmeralda de longe e cuidando para que ela não percebesse, todo mês, via
que ela entrava na agência bancária da praça, ia até ao caixa, conversava e saía
com um embrulho que parecia ser dinheiro. Ora, se ela tinha conta em uma agência
de banco, então tinha uma família. Tinha uma história. Tinha documento. Tinha
uma identidade. Eu conhecia a caixa do banco que atendia a senhora. Depois de
um tempo me aproximei da caixa e perguntei quem era aquela senhora. Ela ficou
assim,meio que desconfiada comigo.Como eu era cliente do banco, me contou o que
ela sabia sobre Dona Esmeralda. Pouca coisa. Tinha realmente uma conta bancária
e todo mês ia receber a aposentadoria que o marido policial tinha deixado a
ela. Dona Esmeralda era viúva. Todo mês ela pegava uma pequena parte do
dinheiro da aposentadoria e o restante da grana depositava na conta de um dos
seus filhos.
Sabe
quando o povo resolve usar a imaginação? Diziam que ela tinha sido abandonada no dia do
casamento e resolver a tornar-se uma andarilha. Diziam que depois de ter
descoberto a traição do marido ficou louca. Povo linguarudo e maldoso. Uma
coisa era certa neste falatório todo:ela falava Inglês fluentemente. Um
Português impecável. Os traços no rosto eram de uma mulher que tinha sido bem
tratada. Os fofoqueiros da praça diziam que ela tinha exercido a profissão de
professora e de tanto estudar tinha ficado louca. Verdades ou não sobre sua
história,agora eu sabia que ela tinha uma conta bancária, filhos e um marido já
falecido. Aos poucos ia descobrindo quem era Dona Esmeralda. Mas ela ainda era
hostil à aproximação de qualquer pessoa. Parecia que não queria que seu mundo se
misturasse ao nosso.
Aos
poucos fui percebendo que ela conversava com o senhor Antonio verdureiro.
Passava horas ali na banca de verduras de cabeça baixa e falando entre lábios com
ele. Sobre o que será que falavam? Talvez o senhor Antonio tivesse mais
informação sobre Dona Esmeralda. Uma tragédia no final de semana quase
interrompeu minha investigação. A prefeitura cedeu à pressão dos moradores do bairro
e começou uma limpeza à força, enviando os mendigos para cidades vizinhas.
Muitos moradores de rua receberam passagens para que eles fossem para suas
cidades de origem, compulsoriamente. Tudo isto à surdina. Tudo isto na calada
da noite. O que os agentes públicos não esperavam era que houvesse resistência.
E houve! Dona Esmeraldo com um grupo de mendigos em farrapos se colocou em
defesa dos amigos. Foram espancados e infelizmente Dona esmeralda levou uma
cacetada na cabeça e foi internada, correndo risco de vida. Ela ficou meses em
coma e distante das ruas.
Neste
período de ausência de Dona Esmeralda me aproximei do verdureiro, e aos poucos
fui ganhando sua confiança. Ele me revelou o que eu já sabia, mas não tinha
certeza,que ela era realmente professora de línguas estrangeiras. Na banca de
verduras, com aquele gesto de abaixar a cabeça, ela não queria ser percebida e ensinava
Francês para o velho verdureiro. Ensinava Inglês também. Soube dela que era professora e mais nada
disse o verdureiro.Poucos dias depois a praça estava cheia de moradores de rua novamente,
e depois de um tempo apareceu Dona Esmeralda. Agora debilitada, e com o lado
esquerdo do corpo quase neutralizado e arrastando as pernas. Falava com a
língua enrolada. A pancada fora forte demais. Não ia mais ao banco. Não
cozinhava mais. Um olhar triste e distante. Era evidente a deterioração de um
ser humano... Um dia quase parti para cima de um comerciante da praça, que
comentava em um grupo de pessoas“está toda estropiada e não morre, deveria ter
morrido”. Perdi a compostura e mandei o cara para...
Em
uma conversa reservada com a caixa do banco fiquei sabendo que ela recebeu a
visita de um dos filhos no hospital, uma única vez, enquanto estava internada. O
filho, acompanhado de sua esposa, levou um papel do banco
com um pedido autorizando que eles tomassem conta da sua conta bancária. Ela
assinou aquele papel em silêncio e de cabeça baixa. Nem um abraço ganhou do
filho e da nora que não via há tempos. Nem um beijo. Duas semanas da sua volta à
praça aconteceu outra tragédia.Num final de semana,um grupo de jovens de classe
média colocou fogo em dois moradores de rua. Como justificativa do ato de
barbarismo disseram que estavam brincando, tinham acabado de sair de uma
balada. Temia pela vida daquela senhora. Uma semana depois da tragédia os
jovens saíram pela porta da frente da delegacia, pagaram a fiança. Um
comentário de um dos pais dos jovens criminosos:“Imagina meu filho ficar preso
por causa destes farrapos humanos”.
Aos
poucos, mesmo com dificuldade, Dona Esmeralda foi voltando à rotina da praça.
Continuou transmitindo conhecimentos ao verdureiro, apesar da limitação
provocada pela cacetada na cabeça. E veladamente o homem me trazia informações
sobre ela. Descobrira que ela é que tinha abandonado a família, e não o contrário.
Não era respeitada pelos netos que a chamavam de velha gagá, principalmente
quando não liberava o parco dinheiro que recebia. Não tinha liberdade em sua
casa. Aos poucos foi sendo jogada de lá para cá, até ser colocada num quartinho
isolado no fundo da casa. A nora que a agradava na frente das visitas, na
intimidade resmungava da sogra para o marido. Um dia Dona Esmeralda saiu
escondida e escolheu a rua como moradia,onde viveu muitos anos. Longe da
família. Pelo menos naquela praça era respeitada pelos seus pares.
Porém
a hostilidade na rua aumentava a cada dia, embora a solidariedade de
instituições religiosas e das pessoas também aumentasse. Em um ano de noites de
muito frio, Dona Esmeralda foi vencida. Foi encontrada morta em um espaço entre
a padaria e uma casa onde tentou se safar do frio. Foi encontrada congelada.
Enterrada como indigente. Não apareceu ninguém para reclamar o corpo. Penso que
teria ainda muito que saber de Dona Esmeralda. Penso em cada morador de rua ali
naquela praça, com histórias semelhantes ou diferentes da dela. Penso na
desumanização da sociedade. Aonde chegaremos assim? Cinco anos depois apareceu
um dos filhos de Dona Esmeralda, perguntando por ela. Disse que precisava
encontrá-la para assinar um documento para que ela autorizasse a venda de uma
de suas casas. Naquele dia me vinguei pelo desprezo com que aquele “filho da...”tratara
a sua mãe. Disse com alegria no coração que ela não era vista por ali há muito
tempo. Ele virou as costas e foi embora sem saber que sua mãe tinha falecido.
Nenhum
tipo de preconceito pode ser proposta de vida.