Nunca
imaginei que existisse uma rua com pouco mais de cem metros de comprimento que
pudesse abrigar tantas diferenças de ideias e imbecilidades em um espaço tão
pequeno. No cair da noite ia chegando gente de todo canto:gente bonita, gente
feia, bêbados, drogados, executivos, yuppies, poetas, intelectuais, liberais,
comunistas, terroristas, integralistas, reacionários, cristãos, muçulmanos, militares,
ateus e outros tantos tipos de gente...O burburinho era grande demais. Todo
mundo falando ao mesmo tempo e querendo emplacar suas idéias a qualquer custo.Com
imposição! Era uma coisa de doido. Do nada surgiam brigas e tiros. Gritos
alucinados. Na manhã do dia seguinte os garis recolhiam os corpos sem vida de
jovens, espalhados nas calçadas. Recolhiam corpos como se fosse um lixo
qualquer. Sem cerimônia.
Depois
da passagem dos garis não sobrava nenhum vestígio da noite anterior. Nenhum
panfleto. Nenhum pedaço de pino da droga consumida loucamente. Não se sentia nem
mesmo o cheiro da urina que lavava as calçadas.
A rua durante o dia era um mega centro comercial. Era gente de todo o
lado. Gente comprando e gente vendendo. Gente pechinchando. Gente gritando o
melhor desconto. Alheios à noite anterior,compradores e vendedores nem imaginavam
que ao chegar de outra noite grupos discutiriam o seu futuro. Uns achavam que a
melhor saída para o povo era a formação de um estado totalitário. A pena
capital era defendida sem nenhuma cerimônia. A segregação étnica era defendida descaradamente.
Os humanistas defendiam a igualdade e o estado democrático de direito. Os
grupos sectários defendiam a morte aos negros e aos gays, e desejavam que os estrangeiros
e nordestinos fossem varridos do cenário. Os consumidores ávidos pelo consumo naquela
rua durante o dia não sabiam que sua vida política, econômica e cultural estava
sendo decidida ali, na calada da noite. Os consumidores queriam apenas
consumir. A qualquer custo. Alheios a tudo.
Uma
coisa estranha acontecia no meio da madrugada: os grupos paravam por alguns
minutos para defender suas ideias. Respeitavam-se. Paravam para ouvir um ao
outro. Sem ninguém dizer nada eles
organizavam o tempo de cada discurso. Se o tempo não fosse respeitado, o
tumulto tomava conta da rua. Gritos e palavrões. Agressões.Era incrível,porém dificilmente
alguém não respeitava o tempo estabelecido. O socialista, com as veias do
pescoço estufadas e a mão com o punho cerrado, falava em nome dos
trabalhadores. Os integralistas falavam em nome dos trabalhadores. Os militares
falavam em nome dos trabalhadores. Cada orador tentava vender seu peixe da
melhor forma possível. Depois da fala eles não conseguiam contra- argumentar
aquilo que tinham ouvido. O tumulto tomava conta. Gritos, tiros, facadas e os
corpos esticados no chão. Cadê a racionalidade?Restava perguntar onde ficava a
preocupação com os trabalhadores. Os poucos trabalhadores que passavam por ali
de volta para casa ou indo para o trabalho eram indiferentes. A rua da
intolerância parecia um hospício. Depois dos conflitos, cada grupo naquele
pequeno espaço ficava em seu pedaço como se fosse uma fortaleza. Se
auto segregavam.
Aquele
movimento não podia dar certo. Aquele caos ia terminar em tragédia maior ainda.
A qualquer momento a explosão anunciada aconteceria. Aquele movimento de gente
louca não ia terminar bem mesmo. Com o passar do tempo eles não conseguiam
ouvir um ao outro. Foram se mostrando dissimulados. Articulados. Muitos grupos
não conseguiam esconder suas verdadeiras intenções com os trabalhadores. Uma
noite, quando estavam todos marcando e limitando espaço na rua da intolerância,
um extremista lançou um coquetel-molotov. Oito mortes. Vinte e cinco feridos
gravemente com queimaduras por todo o corpo. O Estado abafou a tragédia. Nenhuma
notícia foi dada na grande imprensa, a não ser em pequenos tabloides com
alcance insignificante. Depois daquela noite a violência
aumentou muito, muito mais do que a habitual. A justificativa pelo ataque era
simplória: os extremistas odiavam negros e gays e a estes restava a morte.
Deveriam ser banidos da face da terra. Incomodavam!
Cada grupo queria defender sua bandeira. Defender sua pauta de reivindicações.
Nenhum grupo queria defender uma pauta com políticas comuns. Cada um queria instalar
seu governo. Do seu jeito, normalmente à força.Os humanistas eram
coerentes nas suas reivindicações. Defendiam a luta contra a desigualdade. Este
era o grande problema da sociedade. Desigualdade econômica. Desigualdade
cultural. Desigualdade política. Nas suas defesas ensandecidas, cada grupo
reforçava a desigualdade. A ocupação da rua da intolerância durante a noite não
bastava. Invadiram-na durante o dia e saquearam lojas. Incendiaram lojas.
Matavam em nome de um projeto de governo. Caos! O caos antes localizado foi
tomando corpo e ganhando a cidade.
Uma
cidade sem lei. Os trabalhadores acuados. Os políticos institucionalizados em
suas casas de leis discutiam soluções completamente estapafúrdias. Distantes
da realidade dos trabalhadores. Queriam manter suas regalias. Queriam manter
uma política assistencialista. Não estavam nem aí com a violência que tomara
conta das comunidades. Faziam leis para tirar o direito dos trabalhadores, mas
não queriam perder seus privilégios. A cada dia a situação piorava. Quem podia,
contratava segurança particular. As gangues tomavam conta de toda a cidade.
Eles tinham a suas próprias leis. Tinham o tribunal do crime. Estupros. E
outras formas de violência inimagináveis. Além de pagar os impostos,os
trabalhadores tinham também que pagar pedágios de um bairro para o outro.
Sinistro. O lema era salve-se quem puder. A cidade tinha se transformado em um
inferno dantesco.
Neste
final de madrugada termino esse registro, em uma tentativa de deixar um relato
para a posteridade. Os grupos estão em guerra. Milhares de pessoas estão sendo
mortas neste exato momento e outro tanto transformadas em escravos. O estado
não existe. A ordem não existe. Não tem em quem confiar. Gostaria de deixar
escrito um final feliz sobre a humanidade. Gostaria de deixar um final feliz
igual de novela. Não é possível felicidade em tempos
sombrios. Escuto daqui do escritório bombas e tiros e pela janela, avisto o
fogo de balas correndo o céu. Arrumo-me para procurar um abrigo organizado
pelos soldados da paz. Diante do caos instalado vejo que o Deus que acreditei
não existe. Para quem encontrar este relato, gostaria de dizer que aqui nem
sempre foi assim. Que nunca perca a esperança...