segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

CAOS



Nunca imaginei que existisse uma rua com pouco mais de cem metros de comprimento que pudesse abrigar tantas diferenças de ideias e imbecilidades em um espaço tão pequeno. No cair da noite ia chegando gente de todo canto:gente bonita, gente feia, bêbados, drogados, executivos, yuppies, poetas, intelectuais, liberais, comunistas, terroristas, integralistas, reacionários, cristãos, muçulmanos, militares, ateus e outros tantos tipos de gente...O burburinho era grande demais. Todo mundo falando ao mesmo tempo e querendo emplacar suas idéias a qualquer custo.Com imposição! Era uma coisa de doido. Do nada surgiam brigas e tiros. Gritos alucinados. Na manhã do dia seguinte os garis recolhiam os corpos sem vida de jovens, espalhados nas calçadas. Recolhiam corpos como se fosse um lixo qualquer. Sem cerimônia.

Depois da passagem dos garis não sobrava nenhum vestígio da noite anterior. Nenhum panfleto. Nenhum pedaço de pino da droga consumida loucamente. Não se sentia nem mesmo o cheiro da urina que lavava as calçadas.  A rua durante o dia era um mega centro comercial. Era gente de todo o lado. Gente comprando e gente vendendo. Gente pechinchando. Gente gritando o melhor desconto. Alheios à noite anterior,compradores e vendedores nem imaginavam que ao chegar de outra noite grupos discutiriam o seu futuro. Uns achavam que a melhor saída para o povo era a formação de um estado totalitário. A pena capital era defendida sem nenhuma cerimônia. A segregação étnica era defendida descaradamente. Os humanistas defendiam a igualdade e o estado democrático de direito. Os grupos sectários defendiam a morte aos negros e aos gays, e desejavam que os estrangeiros e nordestinos fossem varridos do cenário. Os consumidores ávidos pelo consumo naquela rua durante o dia não sabiam que sua vida política, econômica e cultural estava sendo decidida ali, na calada da noite. Os consumidores queriam apenas consumir. A qualquer custo. Alheios a tudo.

Uma coisa estranha acontecia no meio da madrugada: os grupos paravam por alguns minutos para defender suas ideias. Respeitavam-se. Paravam para ouvir um ao outro.  Sem ninguém dizer nada eles organizavam o tempo de cada discurso. Se o tempo não fosse respeitado, o tumulto tomava conta da rua. Gritos e palavrões. Agressões.Era incrível,porém dificilmente alguém não respeitava o tempo estabelecido. O socialista, com as veias do pescoço estufadas e a mão com o punho cerrado, falava em nome dos trabalhadores. Os integralistas falavam em nome dos trabalhadores. Os militares falavam em nome dos trabalhadores. Cada orador tentava vender seu peixe da melhor forma possível. Depois da fala eles não conseguiam contra- argumentar aquilo que tinham ouvido. O tumulto tomava conta. Gritos, tiros, facadas e os corpos esticados no chão. Cadê a racionalidade?Restava perguntar onde ficava a preocupação com os trabalhadores. Os poucos trabalhadores que passavam por ali de volta para casa ou indo para o trabalho eram indiferentes. A rua da intolerância parecia um hospício. Depois dos conflitos, cada grupo naquele pequeno espaço ficava em seu pedaço como se fosse uma fortaleza. Se auto segregavam.

Aquele movimento não podia dar certo. Aquele caos ia terminar em tragédia maior ainda. A qualquer momento a explosão anunciada aconteceria. Aquele movimento de gente louca não ia terminar bem mesmo. Com o passar do tempo eles não conseguiam ouvir um ao outro. Foram se mostrando dissimulados. Articulados. Muitos grupos não conseguiam esconder suas verdadeiras intenções com os trabalhadores. Uma noite, quando estavam todos marcando e limitando espaço na rua da intolerância, um extremista lançou um coquetel-molotov. Oito mortes. Vinte e cinco feridos gravemente com queimaduras por todo o corpo. O Estado abafou a tragédia. Nenhuma notícia foi dada na grande imprensa, a não ser em pequenos tabloides com alcance insignificante. Depois daquela noite a violência aumentou muito, muito mais do que a habitual. A justificativa pelo ataque era simplória: os extremistas odiavam negros e gays e a estes restava a morte. Deveriam ser banidos da face da terra.  Incomodavam! Cada grupo queria defender sua bandeira. Defender sua pauta de reivindicações. Nenhum grupo queria defender uma pauta com políticas comuns. Cada um queria instalar seu governo. Do seu jeito, normalmente à força.Os humanistas eram coerentes nas suas reivindicações. Defendiam a luta contra a desigualdade. Este era o grande problema da sociedade. Desigualdade econômica. Desigualdade cultural. Desigualdade política. Nas suas defesas ensandecidas, cada grupo reforçava a desigualdade. A ocupação da rua da intolerância durante a noite não bastava. Invadiram-na durante o dia e saquearam lojas. Incendiaram lojas. Matavam em nome de um projeto de governo. Caos! O caos antes localizado foi tomando corpo e ganhando a cidade.

Uma cidade sem lei. Os trabalhadores acuados. Os políticos institucionalizados em suas casas de leis discutiam soluções completamente estapafúrdias. Distantes da realidade dos trabalhadores. Queriam manter suas regalias. Queriam manter uma política assistencialista. Não estavam nem aí com a violência que tomara conta das comunidades. Faziam leis para tirar o direito dos trabalhadores, mas não queriam perder seus privilégios. A cada dia a situação piorava. Quem podia, contratava segurança particular. As gangues tomavam conta de toda a cidade. Eles tinham a suas próprias leis. Tinham o tribunal do crime. Estupros. E outras formas de violência inimagináveis. Além de pagar os impostos,os trabalhadores tinham também que pagar pedágios de um bairro para o outro. Sinistro. O lema era salve-se quem puder. A cidade tinha se transformado em um inferno dantesco.

Neste final de madrugada termino esse registro, em uma tentativa de deixar um relato para a posteridade. Os grupos estão em guerra. Milhares de pessoas estão sendo mortas neste exato momento e outro tanto transformadas em escravos. O estado não existe. A ordem não existe. Não tem em quem confiar. Gostaria de deixar escrito um final feliz sobre a humanidade. Gostaria de deixar um final feliz igual de novela. Não é possível felicidade em tempos sombrios. Escuto daqui do escritório bombas e tiros e pela janela, avisto o fogo de balas correndo o céu. Arrumo-me para procurar um abrigo organizado pelos soldados da paz. Diante do caos instalado vejo que o Deus que acreditei não existe. Para quem encontrar este relato, gostaria de dizer que aqui nem sempre foi assim. Que nunca perca a esperança...