segunda-feira, 20 de agosto de 2018

O SÍTIO


O sítio da matinha da Viúva, em Votuporanga, não era um lugar tão distante da cidade,fazia divisa entre o mundo urbano e o rural. O progresso estava avançando e a cidade começava a engolir o mundo rural, lentamente. As luzes dos postes de madeira, que ao cair da noite ficavam distantes, com o passar dos anos foram se aproximando. A escuridão que dividia esses mundos foi diminuindo, aceleradamente. Com o tempo não sabíamos quem era quem nessa evolução. Tudo foi se misturando. Adorava morar naquele sítio. Um lugar bucólico. Cheio de vida. Ele não existe mais, agora é um condomínio de luxo. Ergueu-se uma casa maior do que a outra.

Antes do progresso, o sítio era assim:

Lá onde morávamos não tinha energia elétrica.Escuridão. Confesso que tinha medo quando começava a anoitecer. Apesar disso, a noite estimulava a imaginação.Foi nessa época que aprendi, sem querer, que podia brincar com as sombras, usando as mãos e a fumaça que saía do fogo da lamparina a querosene. Foi nesse dia que descobri que,colocando uma das mãos diante do fogo e da fumaça negra da lamparina, apareciam sombras na parede da velha casa. Coisa de criança.Achava aquela descoberta inédita. Os olhos brilhavam. No princípio me assustei com aqueles movimentos na parede, logo percebi que vinham das minhas mãos. Foi só alegria. Incrível! Cada noite inventava uma história para dar vida às sombras. Criatividade.

Com as mãos fazia desenhos de pássaros. O bico de um tucano. O voo de um papagaio... Fascinavam-me aquelas sombras que se transformavam em desenhos. Pareciam ter vida. O movimento dos braços se contorcendo, imitando uma cobra. Fantástico. Ficava ali, criando imagens que faziam parte do meu mundo. Horas e horas... Sonhava... Da janela da casa avistava bem longe as luzes da cidade. Os meus olhos corriam um tempo escuro até chegar às luzes. Imaginava como seria morar naquele lugar iluminado. Aos poucos fui descobrindo... Logo fiz amizade com os meninos do mundo da luz, nunca esperava escurecer para ir para casa. Tinha medo de assombração. Com o tempo fui perdendo o medo e transitando com maior facilidade entre o mundo da luz e o do escuro.

Tive uma infância recheada de encantos...

Lembro-me das manhã sem que minha mãe, bem nova, saía de casa para estudar.Bonita.A roupa era impecável. Uma camisa branca feminina. Uma saia cinza que ia até o joelho, meias brancas de colegial e sapato preto. Ao sair ela anunciava todos os cuidados que eu deveria tomar.Minha mãe fazia o curso de magistério. Hoje ela é professora aposentada. Meu avô: há uma lembrança nítida do meu avô Amadeu furando um poço no sítio. Não tinha água encanada. No final da década de 1970,o país foi acometido por surto de meningite e um agente de saúde, em visita ao sítio, tentava convencer meu avô a tomar vacina. Ele estava reticente. Não lembro se ele foi vacinado. Meu avô era uma pessoa introspectiva. Sempre me aconselhava sobre os caminhos que deveria trilhar na vida. Sempre sensato. Sempre fui uma criança “da pá virada”. Risos.

Ainda sobre a lamparina...
            
Quando demorava a pegar no sono e, às vezes, com medo da escuridão, fixava os olhos na luz da lamparina e aos poucos o sono ia chegando. Às vezes os olhos iam se fechando lentamente bem junto com a diminuição da claridade da luz da lamparina.

O que gostava mesmo nesse sítio era o dia de cozinhar (fritar) a carne de porco no tacho no fogão a lenha. Durante meses engordava-se um porco até ele ficar imenso. No dia de matar o porco, os vizinhos apareciam para ajudar. Os primos apareciam... Era uma festa. Uma alegria só... Depois de cozido, os pedaços do porco eram divididos em latas de banha para conserva e consumo durante o ano. Geladeira não era comum e nem todo mundo podia ter uma. Eventos como esse criavam um vínculo forte entre amigos e parentes. No final, fazia-se a divisão da carne e os participantes levavam um pedaço. Ninguém saía de mãos vazias. Sobre o bicho-de-pé conto outro dia.

A lamparina, de novo...

Lembro-me muito bem de minha mãe avisando, delicadamente, para ter cuidado ao me aproximar da pequena lavareda de fogo que saía da lamparina, para não sofrer nenhuma queimadura ou ficar com o rosto preto de fumaça. Foram incontáveis as vezes em que meu rosto ficou marcado com a fumaça escura da lamparina. A primeira vez que fui ao cinema, rapidamente associei aquelas imagens projetadas na grande tela com as sombras que construía nas paredes de casa. Durante muito tempo achei que as sombras da lamparina tinham dado origem ao cinema.


P.S.: sobre a matinha da Viúva, ainda tem muita história a ser contada. Aguardem!

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