terça-feira, 31 de janeiro de 2017

TERAPIA URBANA


Um senhor distinto sentado no último vagão do trem que faz a linha Santana a Jabaquara do Metro. Óculos escuros e terno bem engomado. Braços firmes de gente bem criada. Uma postura impecável. Diante do banco em que o senhor se sentou, um pôster de uma linda mulher com os dizeres: “Não esqueça objetos no vagão.” e “Mantenha o vagão limpo.” Uma companhia agradável aos olhos do senhor.

 Do lado dele se senta uma senhora de meia idade, que desanda a falar sobre o filho, sem saber se o senhor estava disposto a ouvir. “Criei com tanto carinho! Trabalhava dia e noite para dar o de melhor pra este menino. Criei sozinha, sem pai. Nasceu de uma aventura. De um tempo pra cá, meu senhor, deu para responder e dizer que quer conhecer o pai de qualquer jeito. Não sei por onde anda o pai. Foi só aquela noite, nem o nome sei se é verdadeiro. Agora ele deu para me xingar de nomes e me magoa profundamente. Uma vizinha fofoqueira diz que meu filho está andado com gente estranha. Gente que usa droga. Não acredito, ela fala da vida de todo mundo! Outro dia ele me disse que o pai deve ser muito legal, pois este não lhe enche o saco.” Quando ela ia perguntar o que o senhor achava de tudo aquilo, chegou a estação da Praça da Sé, seu lugar de descida. Não ouviu e nem sentiu qualquer gesto do homem, que continuava ali estático, como uma barra de gelo.  Ainda antes de descer murmurou entre dentes “que homem mal educado”.

Ali na Estação da Sé, sobe ao trem e se senta ao lado do senhor um jovem com seus vinte e poucos anos e com uma educação rara nos dias de hoje: diz “bom dia”. O homem não soltou uma palavra, nada, a não ser um gesto com a cabeça quando a porta do vagão fechou e com a saída do trem deu aquele leve tranco. O garoto viu naquele gesto com a cabeça a possibilidade de uma conversa. Ele comentou sobre o calor que estava fazendo e desandou a falar sobre a traição que sofrera, sem se importar se tinha alguém ouvindo em volta. Queria de qualquer jeito se livrar daquela dor no peito que o atormentava. “Fui traído pelo meu melhor amigo. Ela era a mulher da minha vida. Fiz de tudo. Abri mão de sonhos para ficar do lado dela. Depois de um dia de trabalho peguei os dois na nossa cama. Não consegui reagir. Fiquei inerte diante daquela cena. Na minha frente ela arrumou a roupa na mala e foi embora com o traidor. Ele, com cara de assustado. A angústia tomou conta de mim. Há quanto tempo ela me traía?” O senhor continuou em silêncio. O garoto via aquele silêncio como um gesto de solidariedade do desconhecido que estava ao lado. Próximo da estação da Aclimação, onde desceria, o jovem agradeceu pela atenção dada. Disse o rapaz: “O seu silêncio me falou muito, senhor.”.

Na estação Aclimação entra no vagão um senhor por volta dos seus quarenta anos. Aquele tipo de sabe tudo e que não aceita a idade que tem. Gente que sempre acaba sendo ridícula. Senta bem do lado do senhor distinto, que continua ali parado como um soldado em sentido de continência diante do seu superior. Teso. O quarentão se sentou grosseiramente, impedindo que uma senhora de idade avançada se sentasse. Jogou-se na frente da senhora e sentou sem nenhuma cerimônia. Começou a falar tão alto, que além das pessoas que estavam próximas, até o último passageiro sentado do lado oposto também ouvia suas bravatas. Dava tapinhas no ombro do senhor distinto com a maior intimidade e dizia que só paquerava moças novas. Ao final de cada conversa mole lá vinha um novo tapinha no ombro do senhor, que mesmo diante de tanto estardalhaço continuava em silêncio. Tudo o que o fanfarrão falava era para mostrar que ele era o melhor do mundo.

O trem chegou ao final da linha, no Jabaquara. As pessoas descem com pressa e o grosseiro se levanta bruscamente e com indiferença desce, como se não tivesse ninguém ao seu lado. O senhor fica ali estático, não move nenhum músculo do corpo. Quem seria aquele senhor que passou a viagem toda só ouvindo lamentos? Qual seria seu destino? Talvez ele pudesse ser um funcionário desses que fiscalizam a qualidade do serviço oferecido. Ou então, seria um dedo duro a serviço de algum patrão. Será que ele estava ali há muito tempo? Quantas pessoas não passaram naquele dia pelo seu divã?

Durante todo o percurso da viagem da linha azul do Metro, uma senhora de cabelos grisalhos, bem vestida e discretíssima, observava aquele senhor que permanecera imóvel quase toda viagem. Não movera um músculo do corpo. A cor pálida lhe chamara ainda mais a atenção. Com o vagão quase vazio, a não ser os dois ali, a senhora, médica de profissão, examina o pulso e percebe que o senhor está morto. Sem escândalo nenhum chama os seguranças do Metro, e com educação peculiar se identifica e avisa sobre o falecimento daquele passageiro misterioso. Apenas faz um pequeno comentário, que pela rigidez do corpo aquela não tinha sido a única viagem. O homem não pode ser identificado, pois não tinha um documento sequer. Na pasta de couro fino que estava do lado do corpo uma foto, e nela uma senhora e dois jovens. Talvez a esposa e os filhos. Não demorou muito para que a notícia do homem morto no Metro se espalhasse como vento. Os curiosos se aglomeravam e os jornalistas chegavam, ávidos por um furo de reportagem. A médica, depois do serviço prestado, sai discretamente.
 
Eu imagino que, depois de chegar à casa cansada de um dia de trabalho pesado, a primeira senhora que se sentou ao lado do senhor elegante tira os sapatos, senta no sofá quase se deitando, liga a televisão e vê a noticia de que fora encontrado um senhor morto no Metro que fez toda viagem na linha Santana ao Jabaquara. Fica atônita. A senhora tem um sobressalto e pensa, “Nossa, Virgem Maria, eu sentei do lado dele e achei que ele foi mal educado!”. O repórter anuncia em tom dramático que ele sofrera um infarto fulminante. Que sua família ainda não tinha sido encontrada. A única forma de identificá-lo era através de uma fotografia encontrada ao lado do corpo. A senhora fica desolada. O repórter sensacionalista cria incansavelmente um dramalhão mexicano. O homem foi encontrado sem documentos. Mostra a foto à câmera, na esperança de que talvez alguém da família possa estar assistindo o programa...

Isso imagino eu! E os outros dois que sentaram ao lado do defunto, como ficariam quando ficassem sabendo da morte do seu acompanhante silencioso? Será que mais alguém teria sentado ao lado do senhor e não percebido que era um cadáver? A indiferença é algo que dói profundamente. Chega a chocar... 

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