segunda-feira, 22 de junho de 2020

OS MENINOS DA RUA CEARÁ


  
Dedico este texto ao meu amigo de infância Ernesto Brambilla, que venceu a Covid-19.

Cenário: Votuporanga, início da década de setenta.

Os meninos da Rua Ceará acordavam bem cedo.Todos os dias tinham tudo definido,um planejamento de quais seriam as atividades daquele dia. Eram livres e mal vistos pelo engomadinhos. (Risos.) O encontro da turma se dava no final da Rua Ceará com o cruzamento da Rua Santa Cruz, em frente à venda do Venâncio Japonês. Os meninos, pré-adolescentes,tinham cara de marrentos e alguns andavam descalços,de calção e sem camisa. Alguns pais recomendavam aos seus filhos para não andarem com os meninos levados da rua.Mas, sem os pais saberem, seus filhos andavam conosco escondidos. Não fazíamos nada de mal, vivíamos nossa infância com intensidade.

Éramos chamados de moleques de rua, com todo orgulho. (Risos.)

No dia em que o calor estava insuportável,a busca era pelos córregos, tanquinhos e rios para refrescar do calor intenso do interior de São Paulo. Muitas vezes os tanquinhos formavam-se naturalmente ou eram represados por nós. Divertíamo-nos.Aqueles que nadavam mais abusavam da sorte nos pulos e mergulhos. Às vezes encontrávamos um barranco ou uma árvore para fazer de trampolim. Era uma diversão indescritível,andávamos quilômetros em busca de um rio para nadar e brincar. Quantas vezes não salvamos os amigos de afogamento. Muitas! Eu fui um deles. É bom lembrar que a maioria de nós ia escondida dos pais. Um protegia o outro. Éramos uma irmandade. Éramos bons de briga.

Depois que o tempo passou é que percebemos que tínhamos umas brincadeiras bestas e nojentas. De manhã ou em qualquer hora do dia, se alguém estivesse comendo um lanche e um de nós chegasse, logo gritava “metadinha”! A vítima tinha que dividir o lanche. Dava uma raiva quando o lanche era bom! Às vezes, marotamente, quando percebíamos que alguém ia dar o bote da metadinha, dávamos uma cuspida no lanche para que outro não pegasse a metade do saboroso lanche. Brincadeira mais...Outra brincadeira era colocar apelido. Quando o moleque não gostava de tomar banho, recebia o apelido de Macuco (com sujeira encrostada na pele).

Os meninos da Rua Ceará eram terríveis, mas viviam uma infância sadia.

Todos os dias eram dias de futebol de rua. Éramos influenciados pelo time que torcíamos e pela seleção brasileira de setenta. Assim organizávamos a pelada: colocávamos latinhas na rua para marcar o lugar do gol. Ali acontecia o jogo com disciplina criada por nós e respeitada por todos. Nesse campo improvisado a bola corria solta. Mas,montavam-se os times e o campeonato com um número de gols definido, para que desse tempo para todo mundo brincar de bola. Todos os times jogavam. Sempre tinha um vizinho chato que não gostava do barulho das crianças aos gritos de gol e ameaçava não devolver a bola caso caísse no quintal dele. E às vezes não devolvia mesmo! Quando não jogávamos bola na rua procurávamos um quintal baldio para organizar um campinho. As traves eram de bambu.

Sonhávamos com a ideia de sermos jogadores de futebol profissional. Só sonho. (Risos.)

As brincadeiras de rua eram várias: esconde-esconde, raquete,bola queimada. Salva pega, passa anel (nessa de passa anel, muitos conseguiram o primeiro beijo da sua vida) e tantas outras. Algumas nem lembro mais do nome.

Tinha dia que a Rua Ceará parecia um formigueiro de crianças. Os meninos tinham uma coisa engraçada: ficavam de mal entre eles e cruzavam os dedos para mostrar a insatisfação. E ficavam sem conversar um tempo, mas aos poucos, e depois de alguém intermediar,voltavam à conversa. Como se não tivesse acontecido nada entre eles.

Íamos longe de casa para buscar melancia e procurar pomar de laranja.Levamos carreirão de gente e de cachorro. Muitos! Adorávamos os pés de jabuticaba que ficavam ao lado da minha casa. Quem não gostava da nossa visita ao jabuticabal era o dono, que nos colocava para correr com uma espingarda de sal.Quem ele acertava ficava com uma mancha vermelha durante muito tempo e ainda ardia.

PS: Que infância maravilhosa que tivemos!

Marcos Martinez