terça-feira, 25 de julho de 2017

O MENINO QUE ADORAVA TELEVISÃO


O menino que adorava televisão não se lembra de quando viu um aparelho pela primeira vez, mas lembra nitidamente de quando assistia aos filmes: de pé, encostado no portão de uma casa bonita na Rua Amazonas, em uma cidade do interior, no ano de 1967. Num dia frio, a dona da casa o chamou para entrar e assistir ao seriado sentado no sofá. Adora um chamado Terra dos Gigantes. Neste tempo,televisão não era igual a hoje,  que quase todo mundo tem. O aparelho, que mais parecia uma caixa de marimbondo, naquele tempo era objeto de quem tinha posse. Os olhos do menino, bem pertinho da tela da televisão pela primeira vez, brilhavam como estrelas. Foi um dia inesquecível!

O menino não se lembra porque nunca mais voltou para assistir televisão na casa daquela senhora tão bondosa. Lembra que ficou tão tocado por aquele mundo de imagens, que logo arrumou um jeito de continuar assistindo aquela programação tão diversa. Fez amizade com o homem que tomava conta da repetidora das imagens dos canais de televisão, ali na caixa de água da cidadezinha. A única restrição que o homem que tomava conta daquela torre de ferro imensa fez, foi que ele não podia aparecer lá no horário da escola. O homem dizia com firmeza que quem não estudava não virava gente. Lembra também que tinha que ir embora antes de anoitecer. Quem não ficava encantado com o seriado Perdidos no Espaço?

Televisão é entretenimento. Na década de 70, no bar do japonês,o Venâncio gentilmente colocou a televisão na porta da casa para quem quisesse assistir a Copa do Mundo. A seringueira que ficava na frente da casa protegeu do sol a multidão que se formou ali. Era a primeira vez que se transmitia a copa do mundo ao vivo. Fomos tricampeões! Não era toda casa que tinha um aparelho de televisão. Foi ou não foi um gesto generoso do Venâncio do bar? O que era bacana mesmo era quando o japonês deixava as crianças assistirem aos bons filmes de faroeste.

Ali bem perto do bar do Venâncio,na Rua Ceará, no Bairro do Café, o menino de calças curtas percebeu que na vida tem gente que é grandiosa pelos seus gestos, como também há outras pessoas que são mesquinhas.Um morador que não gostava de crianças, quando percebia que elas estavam assistindo a Pantera Cor de Rosa olhando pelas frestas debaixo da porta, de ruindade colocava um tapete para não verem a imagem. Muitas vezes elas ficavam só ouvindo o som da televisão. Quando homem percebia, jogava água por debaixo da porta. Ah! Mas a Hebe Camargo e os festivais de música eram demais!


Naquele tempo, o menino que adorava televisão dividia seu entretenimento entre a televisão e a arte do circo. Uma grande alegria mesmo foi quando ele chegou da escola, abriu a porta e sua mãe tinha comprando uma televisão. Depois disso, a TV passou a ser o móvel principal da sala. Como é bom esse mundo de fantasia. As séries No Fundo do Mar, Batman e Robin e os desenhos animados eram em preto e branco. Eram encantadores, mesmo não tendo a definição de imagem que se tem hoje. Aguçavam os sonhos e as fantasias. Como podem dizer que a televisão endurece alguém? Bobagem!O menino até hoje sente saudade do Velho Guerreiro, o Chacrinha, e ainda assiste ao Silvio Santos nos domingos. Só que agora com senso de crítica e análise.

terça-feira, 11 de julho de 2017

ECLÉA BOSI: ENCANTOU




Em 1999, quando terminei de escrever o livro “Memória & Imagem”, com fotos antigas e depoimentos de antigos e velhos moradores de Cotia, usando como referência de pesquisa o livro “Memórias e Sociedade – lembranças de velhos”, escrito pela professora Ecléa Bosi, sonhava com a possibilidade de ela escrever o prefácio. Ao mesmo tempo pensava intimamente: “— Imagina se com a sua grandeza esta pesquisadora escreveria algumas palavras em um livro que ela não orientou e escrito tão distante do mundo acadêmico!” Sabe aquela coisa que o não a gente já tem, marquei uma visita e atrevidamente fui à sua casa na Granja Viana. Recebido carinhosamente e com um saboroso café, depois de algumas perguntas a professora Ecléa disse-me delicadamente e com algumas recomendações, que escreveria o prefácio. 



No tempo de faculdade meu querido e saudoso professor José Roberto Pereira contava a história do casal Alfredo Bosi e Ecléa Bosi,da proximidade deles com a comunidade.Eles participavam das festas e tinham uma atuação política na defesa dos direitos humanos. Depois de alguns dias fui novamente recebido pelo casal Bosi, com toda a educação do mundo, o queera peculiar a eles.Tomamos um café e ganhei um presente para memória da cidade de Cotia.  A carta belíssima conta um pedaço da História da Igreja e fala carinhosamente dos moradores antigose velhos amigos que eles se relacionavam.  Gente igual Ecléa Bosi não morre vira anjo e encanta o céu e continua viva entre nós através da sua bela obra em defesa da humanidade. Divido com cada um de vocês o presente que ganhei de Ecléa Bosi:

Carta de Ecléa Bosi

Cotia,16 de março de 1999

Meu caro Marcos,
Li, com muito prazer, as memórias dos velhos cotianos que você recolheu com atenção e carinho. Memórias risonhas na sua maior parte, porque esses velhos transbordam de simpatia e amor pela vida. Tenho uma raiz muito funda que me prende a esse lugar.
Meu avô, Amadeu Strambi, cultivava uva em São Roque; ali, no alto da serra, passei belos anos de minha juventude. Nas suas noites frias me aqueci no grande fogão de lenha no pátio da Matriz, onde se preparavam os pastéis, o quentão das festas e quermesses. Ao seu redor se apinhavam as crianças, e as velhinhas, embrulhadas nos xales, olhavam as chamas e recordavam os bons tempos. Aquele fogão de lenha era o coração generoso da cidade que pulsava. Mão impiedosa o derrubou. O pátio da comunidade hoje é estacionamento.

Adeus fogão de lenha... adeus velhinhas tiritantes, adeus memória!
Conheci dona Didita, mãe de dona Zizinha, esposa do Sr. Amantino. Cega, costurava e cozinhava com perfeição. Mulher de rara inteligência, feliz de quem pudesse haurir a sabedoria de sua conversa. No casarão onde morou, na rua principal, tudo é venerável, desde as tábuas do assoalho até o espírito da família que, sei, conserva os altos valores de dona Didita.

Conheci, também, o casal admirável, Ana e Paulino Nascimento.
Os “casos” do Sr. Paulino eram notáveis; sua infância de menino de roça, quando o carro de Washington Luiz encalhou no barro da estrada... O presidente foi socorrido pela família do Sr. Paulino, a quem prometeu recompensar com uma escola na região, mas acho que esqueceu depois o prometido.
Ela tratava os doentes com homeopatia, pesando as doses dos remédios nos pratos de uma balança com minúsculos pesos.
- Dona Ana, a senhora levou para o céu a sua balancinha dourada com que curou tanta gente?
E agora, evoco por fim, aquela que foi a alma folclórica de Cotia. Dona Leonor, a que foi parteira e benzedeira.

Tive o privilégio de visitá-la um dia, quando, sentada no leito, penteava seus cabelos; hora ideal para contar histórias e revelar segredos. Quem não assistiu às festas da capela de dona Leonor, no km 40? As ladainhas, toadas de viola, eram cantadas em latim por um ‘capelão’ (as reformas litúrgicas não tinham lá chegando, ainda). Em mais de um livro sobre cultura popular foi descrita a beleza pungente daquelas devoções.

Dona Leonor, dona Didita, dona Ana, abençoem Cotia! Salvem a cidade das indústrias poluidoras, dos prédios que a desfiguram. Abençoem seu ar, suas águas, as matas que a rodeiam. A alma da cidade estava presa nos lugares saudosos que a ignorância e a ambição destruíram. Mas os velhos memorialistas, cujas lembranças lemos com encanto suave neste livro, ensinarão aos jovens a defender sua cidade.
E aqui me despeço, caro Marcos, de você e deles, com respeitoso afeto.
                                                                                                                   Ecléa Bosi